ATA DA VIGÉSIMA SEXTA SESSÃO SOLENE DA PRIMEIRA SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA DÉCIMA LEGISLATURA, EM 17.08.1989.

 


Aos dezessete dias do mês de agosto do ano de mil novecentos e oitenta e nove reuniu-se, na sala de Sessões do Palácio Aloísio Filho, a Câmara Municipal de Porto Alegre, em sua Vigésima Sexta Sessão Solene da Primeira Sessão Legislativa Ordinária da Décima Legislatura, destinada à entrega do Título Honorífico de Cidadão Emérito ao Sr. Sérgius Gonzaga. Às dezessete horas e vinte minutos, constatada a existência de “quorum”, o Sr. Presidente declarou abertos os trabalhos e solicitou aos Líderes de Bancada que conduzissem ao Plenário as autoridades e personalidades presentes. Compuseram a Mesa: Ver. Valdir Fraga, Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre; Dr. Luis Pilla Vares, Secretário Municipal da Cultura, representando o Sr. Prefeito Municipal; Prof. Sergius Gonzaga, Homenageado; Profª Berenice Felipetti, Secretária Municipal de Cultura da Cidade de Canela, representando o Sr. Prefeito Municipal de Canela; Prof. Luiz Antonio de Assis Brasil, Presidente da Associação Gaúcha de Escritores; Prof. Adão Eliseu, ex-Vereador deste Legislativo; Sr. Joaquim José Felizardo, Professor e Conferencista; e Ver. Lauro Hagemann, 1º Secretário deste Legislativo. A seguir, o Sr. Presidente, proponente da concessão do Título Honorífico de Cidadão Emérito ao Sr. Sergius Gonzaga, e em nome das Bancadas do PDT, PMDB, PTB e PL, discorreu sobre as razões que o levaram a tal propositura. Destacou as qualidades do Homenageado, na área de ensino, comunicação, e cultura da nossa Cidade; e enfatizou seu espírito solidário e empreendedor em tudo o que diz respeito à educação. Em prosseguimento, o Sr. Presidente concedeu a palavra aos Vereadores que falariam em nome da Casa. O Ver. Omar Ferri, em nome das Bancadas do PSB e do PDS, solidarizou-se com a iniciativa do Ver. Valdir Fraga, em homenagear a intelectualidade desta Cidade. Questionou a situação da educação e da cultura no País, afirmando que o futebol ganha mais destaque do que a própria cultura neste País. Destacou a “alta qualificação intelectual” do Homenageado e o quanto é justa esta homenagem. O Ver. Lauro Hagemann, em nome da Bancada do PCB, distinguiu a presença, na tarde de hoje, nesta Casa, da intelectualidade riograndense; destacou a importância da conferência do Título de Cidadão Emérito ao Prof. Sergius Gonzaga, e conclamou ao Homenageado e presentes, a deflagrarem ampla campanha em defesa da linguagem nacional, destacando que a língua, “código de trabalho diário”, vem sendo vilipendiada. Salientou, ainda, que a língua é um dos “fatores, primordiais, da unidade nacional”. E o Ver. Flávio Koutzii, em nome da Bancada do PT, falou de sua convicção da justiça de tal homenagem, afirmando ser o reconhecimento da capacidade e da inteligência do Homenageado, em prol da cultura da nossa sociedade. Salientou a atuação do Homenageado nessa área e congratulou-se com o Ver. Valdir Fraga, autor da proposição. A seguir, o Sr. Presidente convidou os presentes a, de pé, assistirem à entrega do Título de Cidadão de Emérito ao Sr. Sergius Gonzaga, concedido através do Projeto de Resolução nº 44/84 (proc. 2070/84), pela Srª Domenica Gonzaga. Após, o Sr. Sergius Gonzaga agradeceu a concessão do Título, destacando o significado de tal homenagem. Relatou quadros de sua vida, desde sua chegada a esta Cidade, nominando amigos e experiências com eles vividas. Nada mais havendo a tratar, o Senhor Presidente encerrou os trabalhos às dezoito horas e trinta e cinco minutos, convidando as autoridades e personalidades presentes a passarem à Sala da Presidência, e convocando os Senhores Vereadores para a Sessão Ordinária de amanhã, à hora regimental. Os trabalhos foram presididos pelos Vereadores Valdir Fraga e Isaac Ainhorn, e secretariados pelo Ver. Lauro Hagemann, 1º Secretário. Do que eu, Lauro Hagemann, 1º Secretário, determinei fosse lavrada a presente Ata que, após lida e aprovada, será assinada pelo Senhor Presidente e por mim.

 

 


O SR. PRESIDENTE (Valdir Fraga): É com prazer que recebemos a todos, na Casa do Povo, para esta Sessão Solene, para a entrega do Título Honorífico de Cidadão Emérito ao Sr. Sergius Gonzaga.

Em nome da Casa falarão os Vereadores: Flávio Koutzii, pela Bancada do PT; Ver. Lauro Hagemann, pela Bancada do PCB; Ver. Omar Ferri, pelas Bancadas do PSB e PDS; este Vereador, pelas Bancadas do PDT, PMDB, PTB e PL.

A Sessão Solene para entrega do título de Cidadão Emérito ao Sr. Sergius Gonzaga foi requerida por mim, Ver. Valdir Fraga e foi aprovada por unanimidade em 1984, mas como neste período havia eleições, resolvemos deixar passar as eleições para não misturar esse mérito que ele tem com a política. Este Vereador fala, hoje, em nome das Bancadas do PMDB, do PTB, do PL e da minha Bancada, o PDT. Solicito, de imediato, ao Ver. Isaac Ainhorn que ocupe a direção dos trabalhos para que eu possa fazer o pronunciamento.

 

(O Sr. Isaac Ainhorn assume a Presidência dos trabalhos.)

 

O SR. VALDIR FRAGA: Ver. Isaac Ainhorn, 1º Vice-Presidente desta Casa, ocupando a direção dos trabalhos neste momento; Prof° Luiz Antônio de Assis Brasil, Presidente da Associação Gaúcha de Escritores; Prof. Adão Eliseu, ex-Vereador desta Casa e ex-Vice-Presidente exatamente neste período, quando foi aprovada esta homenagem ao nosso querido Sergius Gonzaga; Prof° Joaquim José Felizardo, professor e conferencista.

Procurava alinhar algumas anotações sobre a personalidade do homenageado desta Sessão na busca de uma linha de raciocínio para o meu discurso quando alguém me telefonou, era uma jornalista. Surpreendido, porque quando encaminhamos a homenagem, nós tínhamos a justificativa. Era uma jovem repórter de uma emissora local solicitando alguns dados biográficos do novo Cidadão. Indagou, também, sobre o motivo específico que levou esta Casa, por meu intermédio, conceder-lhe esta distinção. Fiquei a pensar, naquele momento, porque me surpreendia e, como Presidente da Casa e apaixonado pela Casa - e, por isso, agradeço aos companheiros Vereadores que me guindaram à Presidência da Casa - fiquei a pensar. Num lapso de tempo, desfilaram pela minha memória, como se fosse uma fantástica máquina do tempo, dezenas e dezenas de títulos honoríficos que a Câmara aprovou, apresentados por um ou por outro Vereador, aqui na Casa. Está contido na Resolução que institui o Título Honorífico de Cidadão Emérito, em qual deles enquadraria o meu indicado que, na verdade, eu até perguntava quem era ele. É lógico que eu sabia, e lembrava logo o Curso Franklin Delano Roosevelt, onde se reuniam o Sergius, o Régis, da lancheria ali da UFRGS, naquela correria dos anos de 1974/1975. Beleza de tempo, nós tínhamos, inclusive mais cabelo, eu e o Régis.

Nascido em família de posses modestas, mas bem estruturada, na cidade de Taquara. Não está no discurso, mas eu quero lembrar que, em meados de 1972/1973, através da amizade que tínhamos com o Dep. Paraguassú e com a família, seguidamente saíam alguns almoços, rapidamente, com panela de ferro. Num desses almoços, de repente, sumiu uma panela de ferro e nosso bom Gonzaga lá, xerife, pai dos nossos dois companheiros, do nosso homenageado, descobriu depois que a panela foi furtada pelo Paraguassú. Mas aí o Sergius se transferiu para Porto Alegre, já trazendo no coração o gosto pela literatura, da qual jamais se afastaria, ao longo de sua vida. Passou pelo curso de Jornalismo, que abandonou para cursar a faculdade de Letras. Ainda acadêmico, deu asas a sua extraordinária criatividade, produzindo saborosos contos, muitos dos quais foram premiados em diversos concursos literários. Lúcido, observador atento dos fatos sociais. Quando coloco lúcido, lembro-me que, hoje, quando vinha de minha residência, pensei: ele se parece com um animal, com aquele jeitão dele! Aí, me lembrei de um urso, bonito, branco, aquele jeitão. Isto não está no discurso, mas a gente tem que colocar o que sente na homenagem que faz à pessoa que quer bem e por quem torce.

Sentiu, desde cedo, que o futuro deste País jamais poderia navegar ao largo das escolas primárias, dos cursos secundários e das universidades. Não haveria desenvolvimento sem estímulo à pesquisa, fator que, naquela quadra da vida brasileira, nos anos 1960 a 1970, sofria o negativo impacto do regime autoritário que atormentou a vida brasileira durante tantos lustros, com método, firmeza e obstinação. Atirou-se à tarefa de prestar sua contribuição à formação de jovens, participando da criação de vários cursos pré-universitários que marcaram e ainda marcam época em Porto Alegre. Eu coloquei aqui o Curso Franklin Roosevelt, lembrando 1965/1966, quando estive por lá e em 1972/1973 na UFRGS, e já dizia que estava na faculdade, mas na verdade não passei por ela. E no bar, eu perguntava para o Sergius, naquelas noites agitadas, não lembro se era lancheria ou bar, era por ali, e por ali se conseguia as vagas, quem tinha dinheiro conseguia, quem não tinha também conseguia, sempre se dava um jeito, quando não era o Sergius era o Régis, era uma correria que dava certo.

Desde o primeiro momento, procurou fugir das características quase comuns a muitos cursinhos, cujo objetivo maior era o de equipar alunos despreparados com os chamados macetes e conduzi-los para dentro das universidades. Nosso Cidadão, num lance muito do seu feitio, transformou essa modalidade de ensino em valioso instrumento gerador e agitador de novas idéias. A partir daí, juntava-se ao professor universitário, ao escritor, ao conferencista, ao crítico literário, outro personagem: promotor de eventos culturais e artísticos que levaria esta Cidade a um verdadeiro rodopio com a sucessão de acontecimentos que passaram a desfilar ante seus olhos. Nasceu o Festival de Inverno, inflado pelas presenças de Eduardo Galeano, Darci Ribeiro, Celso Furtado, Paulinho da Viola, Paulo Autran, Nelson Werneck, Eric Nepomuceno, personagens encantadores. A este respeitável escrete juntou nosso astro de primeira grandeza, que é o Josué Guimarães.

Mas o Festival de Inverno foi a gota d’água no apetite insaciável do nosso Cidadão, sempre guloso por realizações de grande porte, dono de uma personalidade equilibrada, mas não menos atrevida, ousou outro lance, o de tirar o sono de qualquer um, menos o dele. Promoveu a pré-estréia de vários filmes nacionais, aqui em Porto Alegre, num verdadeiro tudo ou nada. Valeu seu faro, venceu a tudo! Na metade desta década, organizou a Livraria Quarup, cenário de memoráveis sessões de autógrafos e ponto de encontro de intelectuais porto-alegrenses. Ainda coloquei aqui, até eu fui. Tu lembraste de mim, não é? Foi um prazer muito grande. Fundou o Jornal Já, que circulou por um largo tempo como um veículo alternativo de opinião e cultura. Mais recentemente – pelos seus méritos – foi convidado para assumir a direção da editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também é professor de literatura. Como afirma Arnaldo Campos, deve-se a ele a radical transformação da Editora Universitária, hoje uma instituição produtiva e atuante, respeitada dentro e fora da universidade. O simpático Volume Síntese Universitária, uma coleção nascida do seu conhecimento e inventiva, estão levando a todo o Brasil, por meio destas edições que rapidamente se esgotam, textos de excelentes autores analisando os diferentes segmentos da cultura brasileira. Qual seria, agora, o seu próximo lance? Ainda bem que temos pessoas assim, hein? Já ensinara, já escrevera, já promovera, já fundara a livraria e jornal, já editara, mas lá no fundo havia algo testando a sua sempre latente sensibilidade de comunicador e foi através de um convite do nosso querido Prof. Clóvis Duarte, que é o grande culpado, não é? Pois aí eu antecipo a questão do lobo. Aí é que eu tinha que falar no lobo, se tornou possível materializar mais um dos intentos. A partir daí passou a entrar na nossa casa aquele professor grandalhão que, segundo Moacyr Scliar, passou a mostrar que a TV não precisa só de diversão e que ela pode ensinar, e mostrou que o ensino não precisa ser chato, que ele pode divertir. Pois aquele lobão que aparece, para mim lobão, para outras pessoas bonitão, não é? Para mim lobão, aquele jeitão lá, coloca em um minuto, um segundo, não é isto Clóvis? Ele faz as suas colocações rápidas, todo mundo entende, ele sai e ninguém se dá conta que ele está saindo. Até aqui traçamos um perfil profissional, embora muito sintético do nosso homenageado, mas o seu lado humano, como seria? É Arnaldo Campos, novamente, seu amigo, que uma vez mais nos socorre. Diz Arnaldo em depoimento escrito: “Do ponto de vista das relações humanas a solidariedade foi sempre uma constante no seu comportamento”. Nunca se omitiu diante dos problemas que afetam os amigos e outras pessoas que a ele recorrem na busca de alguma perspectiva pessoal ou coletiva. Ele é dos que se afligem com a aflição alheia e tolerante sem ser conivente com incorreções. Sempre encontrou tempo para ouvir - e aí é que começo a ler mal, porque quero lembrar, pois estou lendo e quero dizer o que sinto. Quero lembrar as cartinhas que encaminhávamos para o Sergius e o Régis no Unificado: “Estamos encaminhando aí um menino que precisa de um auxílio, assim e assim, não tem condições”. E, naquela correria, ele não poderia atender naquele momento, nem o Sergius e nem o Régis, mas atendiam no decorrer da tarde ou no início ou término da noite. Depois as mães destes alunos vinham nos agradecer. Não está escrito aqui, mas a loucura de colocar isto, este prazer desta homenagem é que nos leva a colocar. É o jeitão, porque temos a honra, o prazer como todos nós aqui presentes, de sermos teus amigos e sabemos do teu talento.

Posto isto, revelo, como já o fizera satisfazendo a curiosidade profissional da jornalista a que me referi no início desta fala, os motivos que me levaram a requerer a cidadania emérita ao digno, eficiente, admirado e talentoso Prof. Sergius Gonzaga. Sua contribuição para a sociedade porto-alegrense, seguramente, insere-se nos quatro itens exigidos pela Resolução nº 713 desta Câmara Municipal, que criou a honraria: social, político, cultural e artístico.

Professor Sergius, um abraço, e este título, na verdade V. Sa já o merecia há muito tempo e estamos aqui, nós todos, toda a Cidade. Eu, em nome da Casa, outros Vereadores farão seus pronunciamentos, mas é um dos títulos que estou dando com muito coração e que foi aprovado por unanimidade por esta Casa. Estou dando para uma pessoa que se transformou dentro do meu ser um grande amigo e sempre terás um torcedor. Quando aquele homem, aquele lobão, aquele homem grande estiver na televisão eu serei um dos macacos de auditório do outro lado, porque sei que estarei aprendendo alguma coisa. Um abraço. Muito obrigado. (Palmas.)

 

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE (Valdir Fraga): Com a palavra, o Ver. Omar Ferri que fala pela sua Bancada o PSB e pelo PDS.

 

O SR. OMAR FERRI: Exmº Sr. Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, Valdir Fraga; meu dileto e particular amigo Joaquim José Felizardo, ilustre professor e conferencista. Eu me permito a saudar e abraçar também a Nídia Guimarães, que se encontra aqui entre nós, que me é muito grata. Minhas senhoras; meus senhores; Vereadores aqui presentes e ilustre homenageado, nosso Professor Sergius Gonzaga.

Preparei agora, nesses vinte ou trinta minutos que antecederam esta solenidade, um pequeno discurso de cinco ou seis minutos. Nele coloquei uma palavra: Suécia - 1958, e isso tem um significado para mim e para todos nós. E aqui faço um “gancho” com o brilhante e afetuoso pronunciamento do colega Valdir Fraga que falou em lance, num primeiro momento, e em torcedor, num segundo momento. Porque eu introduzi em meu pronunciamento uma frase apenas, é que nós, Sergius, sabemos muito mais de um jogador de futebol do que de alguém que promove a cultura neste Estado e neste País. Por isso que eu botei Suécia, 1958, porque enquanto todo o Brasil se magnetizava com o campeonato do mundo que lá se desenrolava, com dezenas de estações retransmissoras brasileiras, na Suécia a vida se desenvolvia dentro da maior normalidade e naturalidade. Apenas uma emissora sueca transmitia aquele evento, para ver o que está acontecendo hoje conosco em matéria de cultura. Uma novela sobre a vida de um inventado tartufo qualquer, com estórias de exaltação à trapaça e à honestidade pública, consegue magnetizar o povo como um todo, destruindo os valores éticos, sociais, morais, políticos e, muito pior, condicionando o próprio povo a um modo de ser, de pensar, de se comportar e, conseqüentemente, promovendo desvios de conduta, não apenas no indivíduo, mas até de um grupo social. Houve, neste País, de 1964 para cá, a massificação da ignorância. Daí porque passaram a proliferar em todos os quadrantes desta Nação as picaretagens místicas e as intolerâncias sociais. E esta Casa, Valdir, em boa hora resolveu homenagear o antídoto de tudo isto que está acontecendo aí fora, porque a Casa já, erradamente, homenageou até churrasqueiros. Veja bem, Valdir, não quero absolutamente censurar homens que vieram inclusive de além-mar e foram por nós merecidamente homenageados. Mas houve época em que se homenageou churrasqueiros por serem churrasqueiros. Isso não é, jamais, a promoção da cultura. Por isso que, hoje, Sergius Gonzaga, através da idéia brilhante de Valdir Fraga, é um apanágio para todos nós Vereadores e um símbolo para esta Casa. Ele representa uma antítese do erro; e seus comentários corretos, concretos, lógicos, eficazes, avassaladores no sentido da nossa cultura garantem que, inobstante o medievalismo e o atavismo, ainda existe vida inteligente entre nós.

Foi por convite dele - vou repetir um pouquinho o que disse nosso Vereador-Presidente - que por aqui passaram os expoentes máximos da cultura brasileira e latino-americana, como é o caso de Darci Ribeiro que, na opinião de Joaquim José Felizardo, é o nosso Eduardo Galeano. Foi ele que patrocinou a estréia nacional de “Os Anos JK”, de Silvio Tendler, numa época em que além desse fato significar um acinte, era até perigoso frente ao quadro de miséria moral, política e social então existente. Além de tudo, Sergius Gonzaga era um homem que lutava pela liberdade, pelo estado de direito e pela cultura. E lutava com coragem! Hoje, é Diretor da Editora da Universidade, a qual deu-lhe dimensão nacional. Criou a coleção “Síntese Universitária”, publicando autores fora do circuito universitário, como Moacyr Scliar, Cacá Diegues, Voltaire Schilling, Eric Nepomuceno, Nelson Werneck Sodré, Joaquim José Felizardo e Luiz Pilla Vares, que para honra nossa, estão presentes, juntando-se a nós nesta justa e merecida homenagem ao nosso companheiro Sergius Gonzaga. Mais recentemente tem se revelado excepcional comentarista de televisão, com alta qualificação intelectual.

Eu termino numa frase só, que me parece representar a síntese, o símbolo e o coroamento de todas as aspirações desta Casa quando quiseram e entenderam de homenagear uma cabeça privilegiada: é, realmente, uma das cabeças mais brilhantes de sua geração! Muito obrigado. (Palmas.)

 

(Revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: Com a palavra, o Ver. Lauro Hagemann pelo PCB.

 

O SR. LAURO HAGEMANN: Ver. Valdir Fraga, Presidente da Casa; prezado companheiro Joaquim José Felizardo, Professor, 1º Secretário de Cultura deste Município; meu prezado companheiro e amigo ex-Vereador Adão Eliseu; meu prezado e querido Sergius Gonzaga; Srs. Vereadores; senhoras e senhores.

A Câmara Municipal de Porto Alegre tem o raro privilégio, hoje, de ser sede de um sarau da mais expressiva participação. Estamos, hoje, tendo uma verdadeira festa da intelectualidade rio-grandense. E a Câmara, de vez em quando, se proporciona estes momentos. Uma Casa quase sempre agitada pelos debates, pelo encontro de idéias conflitantes, às vezes nem sempre comedidas, ou comedidos estes embates, às vezes até numa linguagem áspera.

Hoje, felizmente, estamos aqui para homenagear uma figura exponencial da Cidade. Porto Alegre, através da sua Câmara tem, de vez em quando, encontrado estes espaços e achado as expressões em que se manifestar nestes momentos. Eu não nego a exasperação do Ver. Omar Ferri ao dizer que a Casa homenageou, em outras ocasiões, os churrasqueiros da Cidade, porque eles também fazem parte da vida da Cidade. Às vezes a Casa tem uns momentos de desequilíbrio, mas hoje retomamos o equilíbrio e estamos a homenagear Sergius Gonzaga.

Hoje, pela manhã, ao estabelecer o meu programa diário de atividades, eu me lembrei que devia falar na Sessão Solene em homenagem a Sergius Gonzaga. E me perguntava: o que se vai dizer de e ao Sergius Gonzaga e me ocorreu que, talvez, a melhor forma de homenageá-lo é a de lembrar a sua importância no atual concerto editorial desta Cidade e deste estado ao dirigir a editora da UFRGS. E como homem de letras, professor, comunicador, eu quero pedir licença ao companheiro Sergius Gonzaga para pedir-lhe que se junte e faça juntar todos esses amigos que aqui estão presentes e outros que aqui não estão para que se desencadeie, a partir daqui, com quem quiser se associar, uma ampla campanha de defesa da língua portuguesa falada no Brasil.

Creio que isso faz parte da sua atribuição editorial. Eu me atreveria a dizer que todo esse labor poderia um dia ser prejudicado se não tivéssemos do outro lado alguém que entendesse o que for escrito a partir de agora e estamos correndo este risco. Infelizmente, a nossa língua, além de ser pisoteada, está sendo atropelada, porque não concebe mais o tipo de ensino da língua portuguesa que se ministra desde os bancos pré-escolares até a universidade. Na nossa profissão, então, de comunicadores a coisa assume proporções fantásticas e falo a quem conhece o problema, por isso me atrevi a levantar, a suscitar essa questão. Parece-me que esta é a melhor fórmula de homenagear Sergius Gonzaga, pedindo-lhe que se incorpore, não sei de que forma, mas haveremos de encontrar um jeito de formar um grande contingente de cultores das letras, de poesia, da arte e até da música, porque a fala é música, a fim de melhorar as condições da língua falada por nós. A começar pelos nossos próprios meios de comunicação de massa, meios de comunicação maior, estamos observando, hoje, contristados, o absoluto desprezo que se atribui a esse instrumento, a esse código de trabalho com o qual temos que lidar todos os dias, letrados e até os iletrados e fazer com que essa língua que é nossa que aprendemos desde a tenra idade está servindo para desagregar esse País. A língua é um fator de unidade nacional, um dos fatores primordiais. É a música com a qual nos acostumamos desde o berço e hoje esta música está se tornando cacofônica. Por isso, meu caro Sergius Gonzaga, ao repetir o apreço que a Cidade tem em receber o mais jovem Cidadão Emérito, que não é nenhum favor, é a tradução de um gesto de justiça, de respeito e de muito afeto. Gostaria de convidá-lo para conosco encetarmos essa campanha. Muito obrigado pelo que já nos deste e pelo que poderá ainda dar. (Palmas.)

 

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: Com a palavra, o Ver. Flávio Koutzii que fala pelo PT.

 

O SR. FLÁVIO KOUTZII: Sr. Presidente, autoridades presentes, senhoras, senhores, amigo Sergius. É claro que não nos surpreende que a qualidade, a inteligência e a sensibilidade de um homem acabem sendo reconhecidas pela Cidade e se formalizem num momento como este, onde a Câmara, por unanimidade, o propõe como Cidadão Emérito da Cidade. Se existisse o título de cronista da Cidade e perscrutador da alma humana, igualmente poderíamos te dar. Acho que esse caminho apontado e recontado nas intervenções anteriores, esse caminho de vida, daquilo que como professor de cursinho tu aprendeste quando ensinavas; daquilo que como homem de comunicação, em espaço hoje no programa Câmera 2, tu fazes nesse meio que, mesmo sem ver quem te vê sabes que é possível a comunicação, passar coisas, sentimentos, e sobretudo uma visão crítica e irônica das coisas que ainda nos preserva nesses momentos difíceis de valores profundamente desagregados, essa crítica, essa percepção inteligente, essa ironia fina, essa cultura que se estende, e sobretudo o olhar crítico ajuda a preservar. Porque não é só no campo da cultura que a cultura funciona; a cultura não está lá, ela funciona quando ela chega cá, quando ela consegue se fazer entender, quando ela consegue se fazer perceber. E, realmente, sem cair naquilo que todos nós obrigatoriamente fazemos, que é o elogio e o reconhecimento, senão tu não estarias aqui, realmente não é pelo compromisso do elogio, mas pela convicção profunda de que ele é justo, de que o reconhecimento da tua inteligência, mas sobretudo da tua sensibilidade, cabe nesta manifestação. Porque é preciso muita qualidade e muita sensibilidade para desentranhar nessa selva do cotidiano o significado das situações sociais e humanas em que vivemos.

Eu fico pensando, tu que parecias ser apenas o cronista de Taquara, se na verdade esse não é um recurso inteligente para falar de Porto Alegre. Porque, na verdade, a cidade pequena é mais humana, e porque faz mais perceptível os problemas e os significados do cotidiano, os quais ajudam a entender no amassamento e na brutalidade das cidades capitais, aquilo que ainda persiste no drama da vida cotidiana, na tragédia e na alegria da condição humana. Acho que a ironia, sempre oportuna, o olhar crítico, nada mais faz do que revelar, quando falando de Taquara, fala de Porto Alegre, daquilo que é bom e ruim, mas sobretudo daquilo que é pedaço da nossa identidade, que é algo, sim, que ainda existe aqui, que é a nossa condição de província - sem falar que somos provincianos - e revela-se na crônica diária o olhar perscrutador de Taquara que percebe claramente que mais do que cidadãos humanos esmagados por uma impessoalidade que avança, guardando sempre por nós e por aqueles que nos ajudam a perceber a riqueza da condição humana, no melhor dela.

É por isso, Sergius, que longe de ser uma homenagem formal, é um reconhecimento mais do que oportuno. Por fim, justamente eu vou falar disso: do reconhecimento. Nós, talvez a maioria dos Vereadores que aqui estão, Vereadores e pessoas de relevância na nossa sociedade, estamos, de certa forma, acostumados a sermos reconhecidos e isso é quase como se fosse natural, previsível e inevitável. Isso acaba produzindo um pequeno empobrecimento, ou seja, uma desvalorização do reconhecimento. Acho, talvez até por coisas que aprendi na minha própria vida, que o aperto e a pressão de um abraço, que a forma de um olhar, que o cumprimento e a calidez de uma amizade, que o reconhecimento que uma cidade faz a alguém que hoje já pertence a ela, é uma coisa muito boa e importante. Não importa quantos somos hoje aqui, e nem se a Câmara é muito importante, ou não, nem se os Vereadores são muito importantes, ou não, o que importa é que o ato do reconhecimento é um ato que enriquece profundamente a vida e faz com que, creio, com muito mais estímulo sigamos adiante e sigamos confortados pelo que nisto há de valor humano e de reconhecimento. Muito obrigado.

 

(Revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: Convidamos a Srª Domenica Gonzaga para fazer a entrega do Diploma que confere a Sergius Gonzaga o título de Cidadão Emérito da cidade de Porto Alegre, pela valiosa contribuição do seu trabalho em prol do engajamento da sociedade porto-alegrense.

 

(Entrega do Diploma.) (Palmas.)

 

O SR. PRESIDENTE: A seguir, concedemos a palavra ao nosso homenageado.

 

O SR. SERGIUS GONZAGA: Estas coisas sempre confundem a gente, sempre atrapalham um pouco a gente. Na verdade, estou muito agradecido pela presença de todos da Mesa: da minha amiga Berenice, que veio lá de Canela; do Assis Brasil, velho grande amigo; do Pilla Vares que além de amigo é editado; o Valdir que foi meu ex-aluno, naturalmente daí a sua bondade. Ainda que, hoje, por algumas observações, me parece que ele lembra o dia em que lhe dei 30 em redação, porque me chamou de urso branco, lobão e outras coisas; ao Isaac Ainhorn, meu companheiro dos anos 60, hoje, também no programa Câmera 2; ao querido ex-Vereador Adão Eliseu, amigo de há tanto tempo; e do Professor Felizardo.

Eu vou falar um pouquinho, porque eu não sei fazer discursos. Na verdade, eu preparei uma coisa, mas, lamentavelmente, eu vou ter que ler, porque estou nervoso. Mas eu resolvi fazer alguns fragmentos, fragmentos amorosos de um interiorano, fragmentos amorosos de um caipira na cidade grande. Vou falar alguma coisa, tecer algum fio em torno de algumas coisas. (Lê.)

 

“A Chegada

 Quando desembarquei na estação-ferroviária, meio mareado após quase três horas de viagem de carro-motor, senti que alguma coisa de especial e definitiva ocorria em meu coração, porque era de manhã, meus amigos, e as luzes de março, luzes de um sol reverberante, faiscavam, cegavam e, é claro, seduziam. Apertei minha maleta de papelão, povoada de algumas camisas, cuecas, meias, uma calça Topeka, um sapato Clark, tênis Sete Vidas e senti, ou penso ter sentido, o cheiro doce de frutas do verão, vindo do cais do porto. Porto Alegre teve para mim esta dupla significação: luzes e cheiros.

Como esquecer aquela manhã, portanto, em que edifícios, ruas, bondes e carros refulgiam, e odores embriagantes paralisavam os meus passos. Como esquecer o misto de pânico e de confiança juvenil com que eu examinava a fisionomia dessa Cidade? Porto Alegre era para mim um mundo de infinitas possibilidades, de inefáveis realizações pessoais e afetivas, de conhecimento e experiência.

Poderia eu imaginar, meus amigos, que quase trinta anos depois daquela manhã de março, um ex-aluno querido lembrasse de seu velho mestre, e junto com os demais Vereadores me outorgasse àquele que é o título mais ambicionado por qualquer dos interioranos que habitam e amam esta Capital?”

“Os Rituais dos Interioranos

Mas na manhã de março de 1962, havia outro sonho, o grande, o maior, o que se apodera de toda a alma interiorana feito uma febre, uma volúpia perpétua. Sim, todos nós, os que viemos de fora desejamos esse momento louco: o momento de andar de escada rolante. Sim, amigos, porque para nós tudo é insignificante, a dor, a paixão, a vida e a morte, tudo isso é secundário diante da maravilhosa geringonça que atormentava os nossos imaginários caipiras: a escada rolante das Lojas Americanas.

Passei uma tarde de espanto e júbilo, subindo e descendo por aquelas escadas que se mexiam ... quando contei ao meu pai, em Taquara, ele tentou me esbofetear pela mentira.

Havia também as fotos. Primeira foto: ali estou eu, calça de nycron e camisa ban-lon, na Galeria Chaves. Instantâneo tempo - tudo é excessivo, desde o sapato, herdado de meu avô, ao sorriso com uma arrogância, uma empáfia e um pedantismo que apenas disfarçam a timidez e o medo.

Segunda foto: desta vez com meu irmão, Régis. Local: monumento a Júlio de Castilhos, na Praça da Matriz. Estamos ambos, por motivos inexplicáveis, agarrados aos leões. Seria um dos terneirinhos da granja de meu pai? Na foto há uma data, outubro de 1963, mas tampouco ela me diz qualquer coisa hoje.

Era apenas um engano, a felicidade nem passaria perto daquela pensão... Nos domingos de sol eu pegava o bonde, sem destino, à toa, vagando pela Cidade, debaixo de um límpido céu. Navegantes, Auxiliadora, Cel. Bordini, João Abott, Gasômetro, IAPI. Na frente das casas, nos muros e nos portões, mocinhas tomavam sol e sorriam. Algumas eventualmente acenavam. Porto Alegre parecia ofertar uma abundância de disponibilidades amorosas, mas na prática subsistia a solidão, a carência e esse desejo de amar - que como diz Drummond - nos paralisa o trabalho.

Com o tempo aprendi a andar de bonde. Exigia-se arte para isso. A regra básica era um pé pra frente e outro pra trás e muito cuidado no arranque, no impulso fortíssimo que derrubava a nós, interioranos, no colo de freiras e senhoras gordas. Mas a gente ia pegando a prática e um dia soltávamos as mãos - embora o máximo de perícia e técnica fosse saltar do veículo em movimento. Na 24 de Outubro, logo após a Lucas de Oliveira, era um dos grandes saltos, prova de equilíbrio e audácia.

Às vezes me pergunto o que ficou disso tudo, dos bondes e dos rapazes com Belmont liso no canto da boca, cabelo engomadinho de Fix-Bril ou Glostora, das mocinhas que acenavam nos portões, com a promessa vaga dos seus corpos e de suas existências enclausuradas. O que ficou disso tudo!

Nos bondes eu conheci Porto Alegre. Hoje, pensando neles, descubro também que, na grande metrópole, tudo (seres, coisas, lembranças), tudo é efêmero, exasperadoramente fugaz.”

“De Como me Tornei Socialista

Gostaria de poder evocar aqui os grandes cabarés de Porto Alegre - o Maipu, a Mônica - mas isso, esse mundo excelso de orgia e paixões sempre me foi inatingível. Apanhei a sobra de tais casas, as mulheres da noite da Sete de Setembro, pobres fêmeas de perfume barato e vidas maltratadas e que - como no poema de Vinícius - cobram barato um instante de esquecimento. A nossa iniciação sexual era quase invariavelmente com prostitutas.

Quando pequei pela primeira vez, quando perdi a castidade, pecado mortal segundo os padres que regiam a nossa vida moral, subi ao viaduto da Borges, sentindo-me um sujo, um réprobo. Lá embaixo, os bondes rugidores varavam a noite porto-alegrense enchendo-a de faíscas - estranha e veloz luminosidade, dragões noturnos brilhantes na névoa de junho e agora brilhando em meio ao cinza do esquecimento a que tudo está condenado - brilhando na memória, aquela noite, o viaduto, a bruma, os bondes e o cheiro de sexo na carne e na alma.

Apaixonei-me pela mulher-dama. Ela me recebia com indulgência e fazia descontos. Apenas nunca deixava beijar-se na boca. Era o seu espaço de pureza: a boca. Disse-me que só permitiria o beijo na boca quando abandonasse a prostituição. Isso talvez não fosse verdade, mas comecei a jogar toda a minha mísera mesada no “bicho” e na bruta da sorte grande. Queria purificá-la, casar-me com ela, constituirmos uma família pequeno-burguesa. Foi então que Luiz Fernando Ehlers garantiu-me que no socialismo o meretrício seria abolido e como acontecera na União Soviética e na China, as prostitutas se regeneravam alegremente, trabalhando como operárias ou camponesas nas fazendas coletivas. Eu preferia que a minha amada ficasse comigo, mas em todos os casos era melhor uma fábrica que um bordel. E havia o beijo na boca que só o socialismo me asseguraria. Passei a esperar a revolução social. Estávamos em 1963 e, nós, de alguma forma já éramos o poder. O beijo estava próximo.”

“Tarde de Abril de 1964

Ele apareceu na sacada da Prefeitura Velha. Pensei: fomos derrotados. As janelas e os balcões do prédio municipal que pela manhã ainda estavam cheios de oficiais da Brigada e civis armados, agora estavam vazios. Na amplidão neoclássica do velho edifício, o Prefeito parecia muito só, muito pequeno. Sua voz veio pausada: “Companheiros, a resistência acabou, o Presidente João Goulart acaba de sair do País”.

Perdemos. E eu vejo as pombas, dezenas delas, voando do chafariz espanhol para as escadarias da Prefeitura e depois, revoando para o Mercado Público, assustadas com os gritos da massa humana que não aceita a rendição, que se desespera na praça. Nós estamos desesperados e eu vejo também um absurdo céu azul projetando-se por sobre as construções de concreto. O que me chocava era a indiferença da natureza, a limpidez do dia, o calor ameno do dia. Havia uma distância estúpida entre a tragédia histórica e a serenidade dos elementos.

Imerso na multidão raivosa, posso até adivinhar as águas do Guaíba, encobertas pelos armazéns do cais, enquanto ouço um choro e o Prefeito, como um autômato, pedindo que voltássemos para casa, enterrássemos as nossas ilusões e evitássemos o derramamento inútil de sangue e projetássemos para o futuro outras tardes, mais felizes do que aquela, mas como eu poderia dissolver na memória aquela tarde com seus pronunciamentos, suas pombas, seu céu azul, como negá-la, desintegrá-la se ela porejava em meu corpo, grudando-se ao meu suor; como, depois de ter oferecido para a Defesa da Ordem, eu poderia retornar para um mundo de objetos pessoais, prosaicos, familiares, como voltar para a casa de minha avó se eu acreditava na Revolução Popular.

Mas voltei. Um amigo meu para suportar a derrota tomou um porre. Eu regressei para casa lúcido. Melhor que voltasse bêbado.”

“Dois Anos Depois e o Sonho Ainda Continua

Fixa-te, memória, fixa-te: Estamos no Alaska. André Foster acaba de ser eleito presidente do CAFDR. Comemoramos a sua vitória. Na mesma, representantes de todas as facções de esquerda do movimento estudantil, vanguarda indiscutível - pensávamos então - da luta do povo contra a ditadura.

Afasto a poeira dos anos e enxergo claro: comemos os pratos baratos do Alaska: Burguês, Robertão, Vietcong. Bebemos desse chopp e acreditamos em nosso triunfo eminente. Depois haverá passeatas, protestos apaixonados, repressão, violência, AI-5, cassações, sombras, torturas, exílio, diáspora, mas agora comemos e bebemos e saudamos André Foster. Lá estão Flávio Koutzii, Geraldo Miller, Zeca Kinijer, Maraschin, Haidee Porto, as Irmãs Metralha, Pilla Vares, Carlos Alberto Vieira e tantos outros. A poeira dos anos ainda não corrompeu nossos cabelos, nossos olhos e corpos. Somos jovens e alimentamos grandes esperanças.

Grito com a minha memória: fixa-te, suspenda o tempo ... e lá estamos nós, paralisados, rígidos, esmaecidos, cor de sépia... Por favor, memória, fixa-te, fixa-te.”

“As Turmas do Professor Joaquim Felizardo

Quando fui me matricular no IPV, o Prof. Felizardo descobriu que meu pai fora preso político como ele no SESME, em 1964. Não permitiu que eu pagasse o cursinho. És meu convidado disse ele para desespero de Clóvis Duarte e Enéas de Souza, seus sócios. Havia várias salas de ‘convidados’ no IPV. Filhos de políticos cassados, de exilados, jogadores de futebol e de basquete, soldados de guarda civil, estivadores, dançarinas da boate Panamericana, motorneiros de bonde, homens da noite, um picolezeiro e até um senhor que afiava tesouras. Todos aguardávamos, com impaciência, a grande palestra sobre a Revolução Francesa.”

“Enquanto Isso no Clube de Cinema

P. F. Gastal e Flávio Loureiro Chaves andam com rolos de filmes escondidos nos casacões. Flávio parece ter roubado o capote de Gogol. Jeferson de Barros, Enéas, Hélio Nascimento, Goida desvelam o cinema de Godard e Antonioni. O público morria de tédio, mas os diretores eram da “ponta da orelha” e as explicações dos críticos mais geniais ainda. Eu assistia a tudo e fingia gostar, devorando caixas de “gauchinho”. O futuro maestro Celso Loureiro Chaves soprava caroços de pipoca nas mocinhas intelectuais que, por sua vez sempre diziam no fim da sessão, que filme denso! Que filme lúcido!”

“O Suicídio de Meu Amigo de Taquara

Percival teve um enorme desengano amoroso em Taquara e compreendeu que a vida não tinha mais qualquer sentido. Resolveu, no entanto, suicidar-se na capital para que seu gesto tivesse uma dimensão mais espetacular, mais universal. Tentei demovê-lo: tudo foi inútil. Por não saber nadar, quis afogar-se no Guaíba. Fomos para a praia da Vila Assunção, tomamos antes algumas cervejas. Depois, ele me abraçou, olhou pesaroso pela última vez em direção ao nordeste, onde fica Taquara e onde morava a pérfida mulher e entrou no rio. A água era clara e doce. Ele foi entrando e sentindo o rio passar pela roupa e tocar a sua pele. Sentiu mesmo em sua pernas um movimento estranho de peixes, o milagre dos peixes do Guaíba. Não se matou. Como poderia fazê-lo naquela água tépida e límpida dominada por inquietos peixes.”

“Os Ventos de Outono

São assombrosos e grandes os ventos de outubro em Porto Alegre. Por causa deles, uma vez já pedi perdão. Hoje quero renovar o pedido. É para as normalistas do Instituto de Educação dos anos de 1963 a 1967. Eu, interiorano solitário, eu, carente amoroso, nos dias de ventania, ali, em frente da escola, sangue exaltado, olhar lúbrico, observava as mocinhas que desciam as escadas e enquanto as saias esvoaçavam, dançavam, subiam, baixavam e apareciam os joelhos e pernas, um delírio, joelhos e pernas. Ah! O Instituto nos dias ventosos de outubro!

Porém, havia outros companheiros; com óculos verdes de play-boy, esgueirando-se lépido pelas palmeiras da Osvaldo Aranha, apesar de seu peso, espreitando tudo com olhar meio tresloucado, lá estava a futuro historiador Voltaire Schilling. E aquele outro rapaz interiorano, cheio de espinhas, prenúncio de cavanhaque, ligeiramente míope e que também se delicia com o bailado do vento, aquele rapaz, por Deus, é o Subsecretário Municipal de Cultura, Carlos Winkler.”

“Os Artistas da Cidade

Eles construíram uma outra Porto Alegre. Com palavras, sons, cores. Os outonos em Vamosy e Eduardo Guimarães. Os crepúsculos em Mário Quintana. Os locais sagrados com Athos Damasceno. O Centro e o Mercado Público na pena de Dyonélio Machado. Os bairros renascidos nas obras de Érico, Scliar, no Josué de Camilo Mortágua. A fisionomia da Cidade percorre os textos de Caio Fernando, do Noll, do Assis Brasil, do Arnaldo Campos. Uma Cidade de escritores. Uma Cidade reinventada pelos escritores. E pelos músicos: Lupicínio, Túlio Piva, Nelson Coelho, Nei Lisboa. Uma Cidade de grupos teatrais e de pintores. Invejo a todos. Piso nas flores roxas dos jacarandás, na Feira do Livro, humilhado por ser incapaz de expressar com palavras minha paixão por Porto Alegre.

Entro no Teatro São Pedro ou no Renascença com amargura por não saber representar. E ressentido, assisto aos shows de flauta mágica de Plauto Cruz. Nunca consegui tocar nenhum instrumento.

Invejo a todos, encho-me de despeito, de rancor mesquinho; mas por outro lado, quando os livros desses autores se abrem, as peças iniciam, as músicas fluem, aí então eu me comovo com os artistas da minha Cidade, os que falam da alegria e da tristeza, motivos de criação, e estendo silenciosamente em sua direção um longo afago, uma louca ternura.”

“Deu Pra Ti Anos 70

Nos anos 70 só resistimos ... Resistência miúda, sem glória, feita quase em silêncio. Mas resistimos.”

“Na Livraria Quarup

Gustavo de Melo, gerente da Livraria Quarup ganha o salário mínimo e pede aumento. Vamos tomar um chopp no Pedrini e eu lhe explico a situação: “É uma época difícil para a livraria em Porto Alegre”. Ele concorda em baixar 20% no seu próprio salário. Como só pode fazer uma refeição por dia, não consegue dormir à noite. Para esquecer a fome, lê de maneira desatinada. Lê as noites inteiras, um livro em média a cada 24 horas. O grande historiador Décio Freitas, freqüentador da Quarup, explica que os uruguaios têm um nível de escolaridade muito melhor que o nosso.

Sonhando com batata frita Gustavo de Melo foi o gerente de livraria mais lido, mais culto, que Porto Alegre já conheceu.”

“Pela Última Vez

Pela última vez, nesta tarde, olho para trás, dominado, é verdade, por certa nostalgia. E assim posso escutar as vozes e os murmúrios dos amigos mortos ou daqueles que simplesmente se afastaram pelos desígnios do acaso. Escuto possivelmente as vozes das mulheres que amei, e que triste vocação do amor, também passaram. Preciso dizer que, nestes quase trinta anos de Porto Alegre, há muitos gestos que não cometi e dos quais me arrependo. Em compensação, se muitos dos meus atos causaram em alguém dor e sofrimento, eu suplico ao ofendido que apague, borre, dando-se conta de que nós, interioranos, somos freqüentemente toscos no trato e na vida. É possível que certas palavras tenham sido ditas de forma áspera ... Era por pudor, era por pudor da ternura meus amigos; outras palavras, quem sabe as mais vitais, ficaram presas na garganta e nunca foram pronunciadas. Adianta desculpar-se agora?

Pela última vez contemplo esta Cidade, Cidade mãe, Cidade amada, Cidade abrigo. E, amorosamente, olho para estas ruas e avenidas, estradas e becos, parques e praças, monumentos, casas, edifícios, luzes. Muita coisa mudou desde 1962. Hordas de pobres, expulsos do campo, invadiram artérias e viadutos, multiplicando-se como flores do esgoto, dando-nos a impressão em que vivemos na Londres de Charles Dickens ou na Paris de Os Miseráveis, de Vitor Hugo. Esquecidas, sujas e abandonadas, crianças sem pais e sem pátria vagam pelas ruas onde antes namorávamos. Será possível um dia voltarmos a aquela Porto Alegre, bucólica e fascinante da Confeitaria Rocco, do Matheus, do footing na Rua da Praia, do papo descompromissado do Largo dos Medeiros? Ou estaremos condenados a fugir para sempre dos mistérios e encantos dessas ruas?

No começo dos anos 1970, viajando com meu amigo J. L. A. Netto pelo interior de Santa Catarina, vendendo livros e polígrafos em colégios e cursinhos, diga-se de passagem, com o mais absoluto fracasso, paramos num pequeno e decadente colégio. O diretor daquele mundo em ruínas, não apenas não nos comprou nada, como nos vendeu aquilo que era o projeto máximo de sua existência: um guarda-chuva cósmico. Horrorizado com o negror dos guarda-chuvas convencionais, ele pintava estrelas, luas e planetas na parte interna do pano, de forma que se abríssemos o guarda-chuva, vislumbraríamos o firmamento. Contra a tempestade, as estrelas.

Acho que está na hora de abrirmos guarda-chuvas cósmicos. Não para mistificar a realidade, mas para despertar a esperança. Precisamos nos unir para termos a esperança de que as massas miseráveis serão integradas à Cidade, em condições mínimas de saúde, educação, trabalho e moradia. Só então nossos filhos poderão voltar às ruas, as mesmas que me receberam tão afetivamente. As ruas de uma Cidade que a partir de indelevelmente hoje também é minha. Obrigado.”

 

(Não revisto pelo orador.)

 

O SR. PRESIDENTE: Vamos encerrando os trabalhos desta Sessão Solene. Agradecemos a presença de todos. Voltem sempre e que o Sergius esteja sempre ao nosso lado. Muito obrigado.

 

(Levanta-se a Sessão às 18h35min.)

 

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