ATA DA VIGÉSIMA SEXTA SESSÃO SOLENE DA PRIMEIRA
SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA DA DÉCIMA LEGISLATURA, EM 17.08.1989.
Aos dezessete dias do mês de agosto do ano de mil
novecentos e oitenta e nove reuniu-se, na sala de Sessões do Palácio Aloísio
Filho, a Câmara Municipal de Porto Alegre, em sua Vigésima Sexta Sessão Solene
da Primeira Sessão Legislativa Ordinária da Décima Legislatura, destinada à
entrega do Título Honorífico de Cidadão Emérito ao Sr. Sérgius Gonzaga. Às
dezessete horas e vinte minutos, constatada a existência de “quorum”, o Sr.
Presidente declarou abertos os trabalhos e solicitou aos Líderes de Bancada que
conduzissem ao Plenário as autoridades e personalidades presentes. Compuseram a
Mesa: Ver. Valdir Fraga, Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre; Dr.
Luis Pilla Vares, Secretário Municipal da Cultura, representando o Sr. Prefeito
Municipal; Prof. Sergius Gonzaga, Homenageado; Profª Berenice Felipetti,
Secretária Municipal de Cultura da Cidade de Canela, representando o Sr.
Prefeito Municipal de Canela; Prof. Luiz Antonio de Assis Brasil, Presidente da
Associação Gaúcha de Escritores; Prof. Adão Eliseu, ex-Vereador deste
Legislativo; Sr. Joaquim José Felizardo, Professor e Conferencista; e Ver.
Lauro Hagemann, 1º Secretário deste Legislativo. A seguir, o Sr. Presidente,
proponente da concessão do Título Honorífico de Cidadão Emérito ao Sr. Sergius
Gonzaga, e em nome das Bancadas do PDT, PMDB, PTB e PL, discorreu sobre as
razões que o levaram a tal propositura. Destacou as qualidades do Homenageado,
na área de ensino, comunicação, e cultura da nossa Cidade; e enfatizou seu
espírito solidário e empreendedor em tudo o que diz respeito à educação. Em
prosseguimento, o Sr. Presidente concedeu a palavra aos Vereadores que falariam
em nome da Casa. O Ver. Omar Ferri, em nome das Bancadas do PSB e do PDS,
solidarizou-se com a iniciativa do Ver. Valdir Fraga, em homenagear a
intelectualidade desta Cidade. Questionou a situação da educação e da cultura
no País, afirmando que o futebol ganha mais destaque do que a própria cultura
neste País. Destacou a “alta qualificação intelectual” do Homenageado e o
quanto é justa esta homenagem. O Ver. Lauro Hagemann, em nome da Bancada do
PCB, distinguiu a presença, na tarde de hoje, nesta Casa, da intelectualidade
riograndense; destacou a importância da conferência do Título de Cidadão
Emérito ao Prof. Sergius Gonzaga, e conclamou ao Homenageado e presentes, a
deflagrarem ampla campanha em defesa da linguagem nacional, destacando que a
língua, “código de trabalho diário”, vem sendo vilipendiada. Salientou, ainda,
que a língua é um dos “fatores, primordiais, da unidade nacional”. E o Ver.
Flávio Koutzii, em nome da Bancada do PT, falou de sua convicção da justiça de
tal homenagem, afirmando ser o reconhecimento da capacidade e da inteligência
do Homenageado, em prol da cultura da nossa sociedade. Salientou a atuação do
Homenageado nessa área e congratulou-se com o Ver. Valdir Fraga, autor da
proposição. A seguir, o Sr. Presidente convidou os presentes a, de pé, assistirem
à entrega do Título de Cidadão de Emérito ao Sr. Sergius Gonzaga, concedido
através do Projeto de Resolução nº 44/84 (proc. 2070/84), pela Srª Domenica
Gonzaga. Após, o Sr. Sergius Gonzaga agradeceu a concessão do Título,
destacando o significado de tal homenagem. Relatou quadros de sua vida, desde
sua chegada a esta Cidade, nominando amigos e experiências com eles vividas.
Nada mais havendo a tratar, o Senhor Presidente encerrou os trabalhos às
dezoito horas e trinta e cinco minutos, convidando as autoridades e
personalidades presentes a passarem à Sala da Presidência, e convocando os
Senhores Vereadores para a Sessão Ordinária de amanhã, à hora regimental. Os
trabalhos foram presididos pelos Vereadores Valdir Fraga e Isaac Ainhorn, e
secretariados pelo Ver. Lauro Hagemann, 1º Secretário. Do que eu, Lauro
Hagemann, 1º Secretário, determinei fosse lavrada a presente Ata que, após lida
e aprovada, será assinada pelo Senhor Presidente e por mim.
O SR. PRESIDENTE
(Valdir Fraga): É com prazer
que recebemos a todos, na Casa do Povo, para esta Sessão Solene, para a entrega
do Título Honorífico de Cidadão Emérito ao Sr. Sergius Gonzaga.
Em nome da Casa falarão os Vereadores: Flávio Koutzii, pela Bancada do
PT; Ver. Lauro Hagemann, pela Bancada do PCB; Ver. Omar Ferri, pelas Bancadas
do PSB e PDS; este Vereador, pelas Bancadas do PDT, PMDB, PTB e PL.
A Sessão Solene para entrega do título de Cidadão Emérito ao Sr. Sergius
Gonzaga foi requerida por mim, Ver. Valdir Fraga e foi aprovada por unanimidade
em 1984, mas como neste período havia eleições, resolvemos deixar passar as
eleições para não misturar esse mérito que ele tem com a política. Este
Vereador fala, hoje, em nome das Bancadas do PMDB, do PTB, do PL e da minha
Bancada, o PDT. Solicito, de imediato, ao Ver. Isaac Ainhorn que ocupe a
direção dos trabalhos para que eu possa fazer o pronunciamento.
(O Sr. Isaac Ainhorn assume a Presidência dos trabalhos.)
O SR. VALDIR FRAGA: Ver.
Isaac Ainhorn, 1º Vice-Presidente desta Casa, ocupando a direção dos trabalhos
neste momento; Prof° Luiz Antônio de Assis Brasil, Presidente da Associação
Gaúcha de Escritores; Prof. Adão Eliseu, ex-Vereador desta Casa e
ex-Vice-Presidente exatamente neste período, quando foi aprovada esta homenagem
ao nosso querido Sergius Gonzaga; Prof° Joaquim José Felizardo, professor e
conferencista.
Procurava alinhar algumas anotações sobre a
personalidade do homenageado desta Sessão na busca de uma linha de raciocínio
para o meu discurso quando alguém me telefonou, era uma jornalista. Surpreendido,
porque quando encaminhamos a homenagem, nós tínhamos a justificativa. Era uma
jovem repórter de uma emissora local solicitando alguns dados biográficos do
novo Cidadão. Indagou, também, sobre o motivo específico que levou esta Casa,
por meu intermédio, conceder-lhe esta distinção. Fiquei a pensar, naquele
momento, porque me surpreendia e, como Presidente da Casa e apaixonado pela
Casa - e, por isso, agradeço aos companheiros Vereadores que me guindaram à
Presidência da Casa - fiquei a pensar. Num lapso de tempo, desfilaram pela
minha memória, como se fosse uma fantástica máquina do tempo, dezenas e dezenas
de títulos honoríficos que a Câmara aprovou, apresentados por um ou por outro
Vereador, aqui na Casa. Está contido na Resolução que institui o Título
Honorífico de Cidadão Emérito, em qual deles enquadraria o meu indicado que, na
verdade, eu até perguntava quem era ele. É lógico que eu sabia, e lembrava logo
o Curso Franklin Delano Roosevelt, onde se reuniam o Sergius, o Régis, da
lancheria ali da UFRGS, naquela correria dos anos de 1974/1975. Beleza de
tempo, nós tínhamos, inclusive mais cabelo, eu e o Régis.
Nascido em família de posses modestas, mas bem
estruturada, na cidade de Taquara. Não está no discurso, mas eu quero lembrar
que, em meados de 1972/1973, através da amizade que tínhamos com o Dep.
Paraguassú e com a família, seguidamente saíam alguns almoços, rapidamente, com
panela de ferro. Num desses almoços, de repente, sumiu uma panela de ferro e
nosso bom Gonzaga lá, xerife, pai dos nossos dois companheiros, do nosso
homenageado, descobriu depois que a panela foi furtada pelo Paraguassú. Mas aí
o Sergius se transferiu para Porto Alegre, já trazendo no coração o gosto pela
literatura, da qual jamais se afastaria, ao longo de sua vida. Passou pelo
curso de Jornalismo, que abandonou para cursar a faculdade de Letras. Ainda
acadêmico, deu asas a sua extraordinária criatividade, produzindo saborosos
contos, muitos dos quais foram premiados em diversos concursos literários.
Lúcido, observador atento dos fatos sociais. Quando coloco lúcido, lembro-me
que, hoje, quando vinha de minha residência, pensei: ele se parece com um
animal, com aquele jeitão dele! Aí, me lembrei de um urso, bonito, branco,
aquele jeitão. Isto não está no discurso, mas a gente tem que colocar o que
sente na homenagem que faz à pessoa que quer bem e por quem torce.
Sentiu, desde cedo, que o futuro deste País
jamais poderia navegar ao largo das escolas primárias, dos cursos secundários e
das universidades. Não haveria desenvolvimento sem estímulo à pesquisa, fator
que, naquela quadra da vida brasileira, nos anos 1960 a 1970, sofria o negativo
impacto do regime autoritário que atormentou a vida brasileira durante tantos
lustros, com método, firmeza e obstinação. Atirou-se à tarefa de prestar sua
contribuição à formação de jovens, participando da criação de vários cursos
pré-universitários que marcaram e ainda marcam época em Porto Alegre. Eu
coloquei aqui o Curso Franklin Roosevelt, lembrando 1965/1966, quando estive
por lá e em 1972/1973 na UFRGS, e já dizia que estava na faculdade, mas na
verdade não passei por ela. E no bar, eu perguntava para o Sergius, naquelas
noites agitadas, não lembro se era lancheria ou bar, era por ali, e por ali se
conseguia as vagas, quem tinha dinheiro conseguia, quem não tinha também
conseguia, sempre se dava um jeito, quando não era o Sergius era o Régis, era
uma correria que dava certo.
Desde o primeiro momento, procurou fugir das
características quase comuns a muitos cursinhos, cujo objetivo maior era o de
equipar alunos despreparados com os chamados macetes e conduzi-los para dentro
das universidades. Nosso Cidadão, num lance muito do seu feitio, transformou
essa modalidade de ensino em valioso instrumento gerador e agitador de novas
idéias. A partir daí, juntava-se ao professor universitário, ao escritor, ao
conferencista, ao crítico literário, outro personagem: promotor de eventos
culturais e artísticos que levaria esta Cidade a um verdadeiro rodopio com a
sucessão de acontecimentos que passaram a desfilar ante seus olhos. Nasceu o
Festival de Inverno, inflado pelas presenças de Eduardo Galeano, Darci Ribeiro,
Celso Furtado, Paulinho da Viola, Paulo Autran, Nelson Werneck, Eric
Nepomuceno, personagens encantadores. A este respeitável escrete juntou nosso
astro de primeira grandeza, que é o Josué Guimarães.
Mas o Festival de Inverno foi a gota d’água no
apetite insaciável do nosso Cidadão, sempre guloso por realizações de grande
porte, dono de uma personalidade equilibrada, mas não menos atrevida, ousou
outro lance, o de tirar o sono de qualquer um, menos o dele. Promoveu a
pré-estréia de vários filmes nacionais, aqui em Porto Alegre, num verdadeiro
tudo ou nada. Valeu seu faro, venceu a tudo! Na metade desta década, organizou
a Livraria Quarup, cenário de memoráveis sessões de autógrafos e ponto de
encontro de intelectuais porto-alegrenses. Ainda coloquei aqui, até eu fui. Tu
lembraste de mim, não é? Foi um prazer muito grande. Fundou o Jornal Já, que
circulou por um largo tempo como um veículo alternativo de opinião e cultura.
Mais recentemente – pelos seus méritos – foi convidado para assumir a direção
da editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também é
professor de literatura. Como afirma Arnaldo Campos, deve-se a ele a radical transformação
da Editora Universitária, hoje uma instituição produtiva e atuante, respeitada
dentro e fora da universidade. O simpático Volume Síntese Universitária, uma
coleção nascida do seu conhecimento e inventiva, estão levando a todo o Brasil,
por meio destas edições que rapidamente se esgotam, textos de excelentes
autores analisando os diferentes segmentos da cultura brasileira. Qual seria,
agora, o seu próximo lance? Ainda bem que temos pessoas assim, hein? Já
ensinara, já escrevera, já promovera, já fundara a livraria e jornal, já
editara, mas lá no fundo havia algo testando a sua sempre latente sensibilidade
de comunicador e foi através de um convite do nosso querido Prof. Clóvis
Duarte, que é o grande culpado, não é? Pois aí eu antecipo a questão do lobo.
Aí é que eu tinha que falar no lobo, se tornou possível materializar mais um
dos intentos. A partir daí passou a entrar na nossa casa aquele professor
grandalhão que, segundo Moacyr Scliar, passou a mostrar que a TV não precisa só
de diversão e que ela pode ensinar, e mostrou que o ensino não precisa ser
chato, que ele pode divertir. Pois aquele lobão que aparece, para mim lobão,
para outras pessoas bonitão, não é? Para mim lobão, aquele jeitão lá, coloca em
um minuto, um segundo, não é isto Clóvis? Ele faz as suas colocações rápidas,
todo mundo entende, ele sai e ninguém se dá conta que ele está saindo. Até aqui
traçamos um perfil profissional, embora muito sintético do nosso homenageado,
mas o seu lado humano, como seria? É Arnaldo Campos, novamente, seu amigo, que
uma vez mais nos socorre. Diz Arnaldo em depoimento escrito: “Do ponto de vista
das relações humanas a solidariedade foi sempre uma constante no seu
comportamento”. Nunca se omitiu diante dos problemas que afetam os amigos e
outras pessoas que a ele recorrem na busca de alguma perspectiva pessoal ou
coletiva. Ele é dos que se afligem com a aflição alheia e tolerante sem ser
conivente com incorreções. Sempre encontrou tempo para ouvir - e aí é que
começo a ler mal, porque quero lembrar, pois estou lendo e quero dizer o que
sinto. Quero lembrar as cartinhas que encaminhávamos para o Sergius e o Régis
no Unificado: “Estamos encaminhando aí um menino que precisa de um auxílio,
assim e assim, não tem condições”. E, naquela correria, ele não poderia atender
naquele momento, nem o Sergius e nem o Régis, mas atendiam no decorrer da tarde
ou no início ou término da noite. Depois as mães destes alunos vinham nos
agradecer. Não está escrito aqui, mas a loucura de colocar isto, este prazer
desta homenagem é que nos leva a colocar. É o jeitão, porque temos a honra, o
prazer como todos nós aqui presentes, de sermos teus amigos e sabemos do teu
talento.
Posto isto, revelo, como já o fizera
satisfazendo a curiosidade profissional da jornalista a que me referi no início
desta fala, os motivos que me levaram a requerer a cidadania emérita ao digno,
eficiente, admirado e talentoso Prof. Sergius Gonzaga. Sua contribuição para a
sociedade porto-alegrense, seguramente, insere-se nos quatro itens exigidos
pela Resolução nº 713 desta Câmara Municipal, que criou a honraria: social,
político, cultural e artístico.
Professor Sergius, um abraço, e este título,
na verdade V. Sa já o merecia há muito tempo e estamos aqui, nós
todos, toda a Cidade. Eu, em nome da Casa, outros Vereadores farão seus
pronunciamentos, mas é um dos títulos que estou dando com muito coração e que
foi aprovado por unanimidade por esta Casa. Estou dando para uma pessoa que se
transformou dentro do meu ser um grande amigo e sempre terás um torcedor.
Quando aquele homem, aquele lobão, aquele homem grande estiver na televisão eu
serei um dos macacos de auditório do outro lado, porque sei que estarei
aprendendo alguma coisa. Um abraço. Muito obrigado. (Palmas.)
(Não revisto pelo orador.)
O SR. PRESIDENTE (Valdir Fraga): Com a palavra, o Ver. Omar Ferri
que fala pela sua Bancada o PSB e pelo PDS.
O SR. OMAR FERRI: Exmº Sr. Presidente
da Câmara Municipal de Porto Alegre, Valdir Fraga; meu dileto e particular
amigo Joaquim José Felizardo, ilustre professor e conferencista. Eu me permito
a saudar e abraçar também a Nídia Guimarães, que se encontra aqui entre nós,
que me é muito grata. Minhas senhoras; meus senhores; Vereadores aqui presentes
e ilustre homenageado, nosso Professor Sergius Gonzaga.
Preparei agora, nesses vinte ou trinta minutos que antecederam esta
solenidade, um pequeno discurso de cinco ou seis minutos. Nele coloquei uma
palavra: Suécia - 1958, e isso tem um significado para mim e para todos nós. E
aqui faço um “gancho” com o brilhante e afetuoso pronunciamento do colega
Valdir Fraga que falou em lance, num primeiro momento, e em torcedor, num
segundo momento. Porque eu introduzi em meu pronunciamento uma frase apenas, é
que nós, Sergius, sabemos muito mais de um jogador de futebol do que de alguém
que promove a cultura neste Estado e neste País. Por isso que eu botei Suécia,
1958, porque enquanto todo o Brasil se magnetizava com o campeonato do mundo
que lá se desenrolava, com dezenas de estações retransmissoras brasileiras, na
Suécia a vida se desenvolvia dentro da maior normalidade e naturalidade. Apenas
uma emissora sueca transmitia aquele evento, para ver o que está acontecendo
hoje conosco em matéria de cultura. Uma novela sobre a vida de um inventado
tartufo qualquer, com estórias de exaltação à trapaça e à honestidade pública,
consegue magnetizar o povo como um todo, destruindo os valores éticos, sociais,
morais, políticos e, muito pior, condicionando o próprio povo a um modo de ser,
de pensar, de se comportar e, conseqüentemente, promovendo desvios de conduta,
não apenas no indivíduo, mas até de um grupo social. Houve, neste País, de 1964
para cá, a massificação da ignorância. Daí porque passaram a proliferar em
todos os quadrantes desta Nação as picaretagens místicas e as intolerâncias
sociais. E esta Casa, Valdir, em boa hora resolveu homenagear o antídoto de
tudo isto que está acontecendo aí fora, porque a Casa já, erradamente,
homenageou até churrasqueiros. Veja bem, Valdir, não quero absolutamente
censurar homens que vieram inclusive de além-mar e foram por nós merecidamente
homenageados. Mas houve época em que se homenageou churrasqueiros por serem
churrasqueiros. Isso não é, jamais, a promoção da cultura. Por isso que, hoje,
Sergius Gonzaga, através da idéia brilhante de Valdir Fraga, é um apanágio para
todos nós Vereadores e um símbolo para esta Casa. Ele representa uma antítese
do erro; e seus comentários corretos, concretos, lógicos, eficazes,
avassaladores no sentido da nossa cultura garantem que, inobstante o
medievalismo e o atavismo, ainda existe vida inteligente entre nós.
Foi por convite dele - vou repetir um pouquinho o que disse nosso
Vereador-Presidente - que por aqui passaram os expoentes máximos da cultura
brasileira e latino-americana, como é o caso de Darci Ribeiro que, na opinião
de Joaquim José Felizardo, é o nosso Eduardo Galeano. Foi ele que patrocinou a
estréia nacional de “Os Anos JK”, de Silvio Tendler, numa época em que além
desse fato significar um acinte, era até perigoso frente ao quadro de miséria
moral, política e social então existente. Além de tudo, Sergius Gonzaga era um
homem que lutava pela liberdade, pelo estado de direito e pela cultura. E
lutava com coragem! Hoje, é Diretor da Editora da Universidade, a qual deu-lhe
dimensão nacional. Criou a coleção “Síntese Universitária”, publicando autores
fora do circuito universitário, como Moacyr Scliar, Cacá Diegues, Voltaire
Schilling, Eric Nepomuceno, Nelson Werneck Sodré, Joaquim José Felizardo e Luiz
Pilla Vares, que para honra nossa, estão presentes, juntando-se a nós nesta
justa e merecida homenagem ao nosso companheiro Sergius Gonzaga. Mais
recentemente tem se revelado excepcional comentarista de televisão, com alta
qualificação intelectual.
Eu termino numa frase só, que me parece representar a síntese, o símbolo
e o coroamento de todas as aspirações desta Casa quando quiseram e entenderam
de homenagear uma cabeça privilegiada: é, realmente, uma das cabeças mais
brilhantes de sua geração! Muito obrigado. (Palmas.)
(Revisto pelo orador.)
O SR. PRESIDENTE: Com a palavra, o Ver. Lauro Hagemann pelo PCB.
O SR. LAURO HAGEMANN: Ver. Valdir Fraga, Presidente da Casa;
prezado companheiro Joaquim José Felizardo, Professor, 1º Secretário de Cultura
deste Município; meu prezado companheiro e amigo ex-Vereador Adão Eliseu; meu
prezado e querido Sergius Gonzaga; Srs. Vereadores; senhoras e senhores.
A Câmara Municipal de Porto Alegre tem o raro privilégio, hoje, de ser
sede de um sarau da mais expressiva participação. Estamos, hoje, tendo uma
verdadeira festa da intelectualidade rio-grandense. E a Câmara, de vez em
quando, se proporciona estes momentos. Uma Casa quase sempre agitada pelos
debates, pelo encontro de idéias conflitantes, às vezes nem sempre comedidas,
ou comedidos estes embates, às vezes até numa linguagem áspera.
Hoje, felizmente, estamos aqui para homenagear uma figura exponencial da
Cidade. Porto Alegre, através da sua Câmara tem, de vez em quando, encontrado
estes espaços e achado as expressões em que se manifestar nestes momentos. Eu
não nego a exasperação do Ver. Omar Ferri ao dizer que a Casa homenageou, em
outras ocasiões, os churrasqueiros da Cidade, porque eles também fazem parte da
vida da Cidade. Às vezes a Casa tem uns momentos de desequilíbrio, mas hoje
retomamos o equilíbrio e estamos a homenagear Sergius Gonzaga.
Hoje, pela manhã, ao estabelecer o meu programa diário de atividades, eu
me lembrei que devia falar na Sessão Solene em homenagem a Sergius Gonzaga. E
me perguntava: o que se vai dizer de e ao Sergius Gonzaga e me ocorreu que,
talvez, a melhor forma de homenageá-lo é a de lembrar a sua importância no
atual concerto editorial desta Cidade e deste estado ao dirigir a editora da
UFRGS. E como homem de letras, professor, comunicador, eu quero pedir licença
ao companheiro Sergius Gonzaga para pedir-lhe que se junte e faça juntar todos
esses amigos que aqui estão presentes e outros que aqui não estão para que se
desencadeie, a partir daqui, com quem quiser se associar, uma ampla campanha de
defesa da língua portuguesa falada no Brasil.
Creio que isso faz parte da sua atribuição editorial. Eu me atreveria a
dizer que todo esse labor poderia um dia ser prejudicado se não tivéssemos do
outro lado alguém que entendesse o que for escrito a partir de agora e estamos
correndo este risco. Infelizmente, a nossa língua, além de ser pisoteada, está
sendo atropelada, porque não concebe mais o tipo de ensino da língua portuguesa
que se ministra desde os bancos pré-escolares até a universidade. Na nossa
profissão, então, de comunicadores a coisa assume proporções fantásticas e falo
a quem conhece o problema, por isso me atrevi a levantar, a suscitar essa
questão. Parece-me que esta é a melhor fórmula de homenagear Sergius Gonzaga,
pedindo-lhe que se incorpore, não sei de que forma, mas haveremos de encontrar
um jeito de formar um grande contingente de cultores das letras, de poesia, da
arte e até da música, porque a fala é música, a fim de melhorar as condições da
língua falada por nós. A começar pelos nossos próprios meios de comunicação de
massa, meios de comunicação maior, estamos observando, hoje, contristados, o
absoluto desprezo que se atribui a esse instrumento, a esse código de trabalho
com o qual temos que lidar todos os dias, letrados e até os iletrados e fazer
com que essa língua que é nossa que aprendemos desde a tenra idade está
servindo para desagregar esse País. A língua é um fator de unidade nacional, um
dos fatores primordiais. É a música com a qual nos acostumamos desde o berço e
hoje esta música está se tornando cacofônica. Por isso, meu caro Sergius
Gonzaga, ao repetir o apreço que a Cidade tem em receber o mais jovem Cidadão
Emérito, que não é nenhum favor, é a tradução de um gesto de justiça, de
respeito e de muito afeto. Gostaria de convidá-lo para conosco encetarmos essa
campanha. Muito obrigado pelo que já nos deste e pelo que poderá ainda dar.
(Palmas.)
(Não revisto pelo orador.)
O SR. PRESIDENTE: Com a palavra, o Ver. Flávio
Koutzii que fala pelo PT.
O SR. FLÁVIO KOUTZII: Sr. Presidente, autoridades
presentes, senhoras, senhores, amigo Sergius. É claro que não nos surpreende
que a qualidade, a inteligência e a sensibilidade de um homem acabem sendo
reconhecidas pela Cidade e se formalizem num momento como este, onde a Câmara,
por unanimidade, o propõe como Cidadão Emérito da Cidade. Se existisse o título
de cronista da Cidade e perscrutador da alma humana, igualmente poderíamos te
dar. Acho que esse caminho apontado e recontado nas intervenções anteriores,
esse caminho de vida, daquilo que como professor de cursinho tu aprendeste quando
ensinavas; daquilo que como homem de comunicação, em espaço hoje no programa
Câmera 2, tu fazes nesse meio que, mesmo sem ver quem te vê sabes que é
possível a comunicação, passar coisas, sentimentos, e sobretudo uma visão
crítica e irônica das coisas que ainda nos preserva nesses momentos difíceis de
valores profundamente desagregados, essa crítica, essa percepção inteligente,
essa ironia fina, essa cultura que se estende, e sobretudo o olhar crítico
ajuda a preservar. Porque não é só no campo da cultura que a cultura funciona;
a cultura não está lá, ela funciona quando ela chega cá, quando ela consegue se
fazer entender, quando ela consegue se fazer perceber. E, realmente, sem cair
naquilo que todos nós obrigatoriamente fazemos, que é o elogio e o reconhecimento,
senão tu não estarias aqui, realmente não é pelo compromisso do elogio, mas
pela convicção profunda de que ele é justo, de que o reconhecimento da tua
inteligência, mas sobretudo da tua sensibilidade, cabe nesta manifestação.
Porque é preciso muita qualidade e muita sensibilidade para desentranhar nessa
selva do cotidiano o significado das situações sociais e humanas em que
vivemos.
Eu fico pensando, tu que parecias ser apenas o cronista de Taquara, se
na verdade esse não é um recurso inteligente para falar de Porto Alegre.
Porque, na verdade, a cidade pequena é mais humana, e porque faz mais
perceptível os problemas e os significados do cotidiano, os quais ajudam a
entender no amassamento e na brutalidade das cidades capitais, aquilo que ainda
persiste no drama da vida cotidiana, na tragédia e na alegria da condição
humana. Acho que a ironia, sempre oportuna, o olhar crítico, nada mais faz do
que revelar, quando falando de Taquara, fala de Porto Alegre, daquilo que é bom
e ruim, mas sobretudo daquilo que é pedaço da nossa identidade, que é algo,
sim, que ainda existe aqui, que é a nossa condição de província - sem falar que
somos provincianos - e revela-se na crônica diária o olhar perscrutador de
Taquara que percebe claramente que mais do que cidadãos humanos esmagados por
uma impessoalidade que avança, guardando sempre por nós e por aqueles que nos
ajudam a perceber a riqueza da condição humana, no melhor dela.
É por isso, Sergius, que longe de ser uma homenagem formal, é um
reconhecimento mais do que oportuno. Por fim, justamente eu vou falar disso: do
reconhecimento. Nós, talvez a maioria dos Vereadores que aqui estão, Vereadores
e pessoas de relevância na nossa sociedade, estamos, de certa forma,
acostumados a sermos reconhecidos e isso é quase como se fosse natural,
previsível e inevitável. Isso acaba produzindo um pequeno empobrecimento, ou
seja, uma desvalorização do reconhecimento. Acho, talvez até por coisas que
aprendi na minha própria vida, que o aperto e a pressão de um abraço, que a forma
de um olhar, que o cumprimento e a calidez de uma amizade, que o reconhecimento
que uma cidade faz a alguém que hoje já pertence a ela, é uma coisa muito boa e
importante. Não importa quantos somos hoje aqui, e nem se a Câmara é muito
importante, ou não, nem se os Vereadores são muito importantes, ou não, o que
importa é que o ato do reconhecimento é um ato que enriquece profundamente a
vida e faz com que, creio, com muito mais estímulo sigamos adiante e sigamos
confortados pelo que nisto há de valor humano e de reconhecimento. Muito
obrigado.
(Revisto pelo orador.)
O SR. PRESIDENTE: Convidamos a Srª Domenica Gonzaga
para fazer a entrega do Diploma que confere a Sergius Gonzaga o título de
Cidadão Emérito da cidade de Porto Alegre, pela valiosa contribuição do seu
trabalho em prol do engajamento da sociedade porto-alegrense.
(Entrega do Diploma.) (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE: A seguir, concedemos a palavra ao
nosso homenageado.
O SR. SERGIUS GONZAGA: Estas coisas sempre confundem a
gente, sempre atrapalham um pouco a gente. Na verdade, estou muito agradecido
pela presença de todos da Mesa: da minha amiga Berenice, que veio lá de Canela;
do Assis Brasil, velho grande amigo; do Pilla Vares que além de amigo é
editado; o Valdir que foi meu ex-aluno, naturalmente daí a sua bondade. Ainda
que, hoje, por algumas observações, me parece que ele lembra o dia em que lhe
dei 30 em redação, porque me chamou de urso branco, lobão e outras coisas; ao
Isaac Ainhorn, meu companheiro dos anos 60, hoje, também no programa Câmera 2;
ao querido ex-Vereador Adão Eliseu, amigo de há tanto tempo; e do Professor
Felizardo.
Eu vou falar um pouquinho, porque eu não sei fazer discursos. Na
verdade, eu preparei uma coisa, mas, lamentavelmente, eu vou ter que ler,
porque estou nervoso. Mas eu resolvi fazer alguns fragmentos, fragmentos
amorosos de um interiorano, fragmentos amorosos de um caipira na cidade grande.
Vou falar alguma coisa, tecer algum fio em torno de algumas coisas. (Lê.)
“A Chegada
Quando desembarquei na
estação-ferroviária, meio mareado após quase três horas de viagem de
carro-motor, senti que alguma coisa de especial e definitiva ocorria em meu
coração, porque era de manhã, meus amigos, e as luzes de março, luzes de um sol
reverberante, faiscavam, cegavam e, é claro, seduziam. Apertei minha maleta de
papelão, povoada de algumas camisas, cuecas, meias, uma calça Topeka, um sapato
Clark, tênis Sete Vidas e senti, ou penso ter sentido, o cheiro doce de frutas
do verão, vindo do cais do porto. Porto Alegre teve para mim esta dupla
significação: luzes e cheiros.
Como esquecer aquela manhã, portanto, em que edifícios, ruas, bondes e
carros refulgiam, e odores embriagantes paralisavam os meus passos. Como
esquecer o misto de pânico e de confiança juvenil com que eu examinava a
fisionomia dessa Cidade? Porto Alegre era para mim um mundo de infinitas
possibilidades, de inefáveis realizações pessoais e afetivas, de conhecimento e
experiência.
Poderia eu imaginar, meus amigos, que quase trinta anos depois daquela
manhã de março, um ex-aluno querido lembrasse de seu velho mestre, e junto com
os demais Vereadores me outorgasse àquele que é o título mais ambicionado por
qualquer dos interioranos que habitam e amam esta Capital?”
“Os Rituais dos Interioranos
Mas na manhã de março de 1962, havia outro sonho, o grande, o maior, o
que se apodera de toda a alma interiorana feito uma febre, uma volúpia
perpétua. Sim, todos nós, os que viemos de fora desejamos esse momento louco: o
momento de andar de escada rolante. Sim, amigos, porque para nós tudo é
insignificante, a dor, a paixão, a vida e a morte, tudo isso é secundário
diante da maravilhosa geringonça que atormentava os nossos imaginários
caipiras: a escada rolante das Lojas Americanas.
Passei uma tarde de espanto e júbilo, subindo e descendo por aquelas
escadas que se mexiam ... quando contei ao meu pai, em Taquara, ele tentou me
esbofetear pela mentira.
Havia também as fotos. Primeira foto: ali estou eu, calça de nycron e
camisa ban-lon, na Galeria Chaves. Instantâneo tempo - tudo é excessivo, desde
o sapato, herdado de meu avô, ao sorriso com uma arrogância, uma empáfia e um
pedantismo que apenas disfarçam a timidez e o medo.
Segunda foto: desta vez com meu irmão, Régis. Local: monumento a Júlio
de Castilhos, na Praça da Matriz. Estamos ambos, por motivos inexplicáveis,
agarrados aos leões. Seria um dos terneirinhos da granja de meu pai? Na foto há
uma data, outubro de 1963, mas tampouco ela me diz qualquer coisa hoje.
Era apenas um engano, a felicidade nem passaria perto daquela pensão...
Nos domingos de sol eu pegava o bonde, sem destino, à toa, vagando pela Cidade,
debaixo de um límpido céu. Navegantes, Auxiliadora, Cel. Bordini, João Abott,
Gasômetro, IAPI. Na frente das casas, nos muros e nos portões, mocinhas tomavam
sol e sorriam. Algumas eventualmente acenavam. Porto Alegre parecia ofertar uma
abundância de disponibilidades amorosas, mas na prática subsistia a solidão, a
carência e esse desejo de amar - que como diz Drummond - nos paralisa o
trabalho.
Com o tempo aprendi a andar de bonde. Exigia-se arte para isso. A regra
básica era um pé pra frente e outro pra trás e muito cuidado no arranque, no
impulso fortíssimo que derrubava a nós, interioranos, no colo de freiras e
senhoras gordas. Mas a gente ia pegando a prática e um dia soltávamos as mãos -
embora o máximo de perícia e técnica fosse saltar do veículo em movimento. Na
24 de Outubro, logo após a Lucas de Oliveira, era um dos grandes saltos, prova
de equilíbrio e audácia.
Às vezes me pergunto o que ficou disso tudo, dos bondes e dos rapazes
com Belmont liso no canto da boca, cabelo engomadinho de Fix-Bril ou Glostora,
das mocinhas que acenavam nos portões, com a promessa vaga dos seus corpos e de
suas existências enclausuradas. O que ficou disso tudo!
Nos bondes eu conheci Porto Alegre. Hoje, pensando neles, descubro
também que, na grande metrópole, tudo (seres, coisas, lembranças), tudo é
efêmero, exasperadoramente fugaz.”
“De Como me Tornei Socialista
Gostaria de poder evocar aqui os grandes cabarés de Porto Alegre - o
Maipu, a Mônica - mas isso, esse mundo excelso de orgia e paixões sempre me foi
inatingível. Apanhei a sobra de tais casas, as mulheres da noite da Sete de
Setembro, pobres fêmeas de perfume barato e vidas maltratadas e que - como no
poema de Vinícius - cobram barato um instante de esquecimento. A nossa
iniciação sexual era quase invariavelmente com prostitutas.
Quando pequei pela primeira vez, quando perdi a castidade, pecado mortal
segundo os padres que regiam a nossa vida moral, subi ao viaduto da Borges,
sentindo-me um sujo, um réprobo. Lá embaixo, os bondes rugidores varavam a
noite porto-alegrense enchendo-a de faíscas - estranha e veloz luminosidade,
dragões noturnos brilhantes na névoa de junho e agora brilhando em meio ao
cinza do esquecimento a que tudo está condenado - brilhando na memória, aquela
noite, o viaduto, a bruma, os bondes e o cheiro de sexo na carne e na alma.
Apaixonei-me pela mulher-dama. Ela me recebia com indulgência e fazia
descontos. Apenas nunca deixava beijar-se na boca. Era o seu espaço de pureza:
a boca. Disse-me que só permitiria o beijo na boca quando abandonasse a
prostituição. Isso talvez não fosse verdade, mas comecei a jogar toda a minha
mísera mesada no “bicho” e na bruta da sorte grande. Queria purificá-la,
casar-me com ela, constituirmos uma família pequeno-burguesa. Foi então que
Luiz Fernando Ehlers garantiu-me que no socialismo o meretrício seria abolido e
como acontecera na União Soviética e na China, as prostitutas se regeneravam
alegremente, trabalhando como operárias ou camponesas nas fazendas coletivas.
Eu preferia que a minha amada ficasse comigo, mas em todos os casos era melhor
uma fábrica que um bordel. E havia o beijo na boca que só o socialismo me
asseguraria. Passei a esperar a revolução social. Estávamos em 1963 e, nós, de
alguma forma já éramos o poder. O beijo estava próximo.”
“Tarde de Abril de 1964
Ele apareceu na sacada da Prefeitura Velha. Pensei: fomos derrotados. As
janelas e os balcões do prédio municipal que pela manhã ainda estavam cheios de
oficiais da Brigada e civis armados, agora estavam vazios. Na amplidão
neoclássica do velho edifício, o Prefeito parecia muito só, muito pequeno. Sua
voz veio pausada: “Companheiros, a resistência acabou, o Presidente João
Goulart acaba de sair do País”.
Perdemos. E eu vejo as pombas, dezenas delas, voando do chafariz
espanhol para as escadarias da Prefeitura e depois, revoando para o Mercado
Público, assustadas com os gritos da massa humana que não aceita a rendição,
que se desespera na praça. Nós estamos desesperados e eu vejo também um absurdo
céu azul projetando-se por sobre as construções de concreto. O que me chocava
era a indiferença da natureza, a limpidez do dia, o calor ameno do dia. Havia
uma distância estúpida entre a tragédia histórica e a serenidade dos elementos.
Imerso na multidão raivosa, posso até adivinhar as águas do Guaíba,
encobertas pelos armazéns do cais, enquanto ouço um choro e o Prefeito, como um
autômato, pedindo que voltássemos para casa, enterrássemos as nossas ilusões e
evitássemos o derramamento inútil de sangue e projetássemos para o futuro
outras tardes, mais felizes do que aquela, mas como eu poderia dissolver na
memória aquela tarde com seus pronunciamentos, suas pombas, seu céu azul, como
negá-la, desintegrá-la se ela porejava em meu corpo, grudando-se ao meu suor;
como, depois de ter oferecido para a Defesa da Ordem, eu poderia retornar para
um mundo de objetos pessoais, prosaicos, familiares, como voltar para a casa de
minha avó se eu acreditava na Revolução Popular.
Mas voltei. Um amigo meu para suportar a derrota tomou um porre. Eu
regressei para casa lúcido. Melhor que voltasse bêbado.”
“Dois Anos Depois e o Sonho Ainda Continua
Fixa-te, memória, fixa-te: Estamos no Alaska. André Foster acaba de ser
eleito presidente do CAFDR. Comemoramos a sua vitória. Na mesma, representantes
de todas as facções de esquerda do movimento estudantil, vanguarda indiscutível
- pensávamos então - da luta do povo contra a ditadura.
Afasto a poeira dos anos e enxergo claro: comemos os pratos baratos do
Alaska: Burguês, Robertão, Vietcong. Bebemos desse chopp e acreditamos em nosso
triunfo eminente. Depois haverá passeatas, protestos apaixonados, repressão,
violência, AI-5, cassações, sombras, torturas, exílio, diáspora, mas agora
comemos e bebemos e saudamos André Foster. Lá estão Flávio Koutzii, Geraldo
Miller, Zeca Kinijer, Maraschin, Haidee Porto, as Irmãs Metralha, Pilla Vares,
Carlos Alberto Vieira e tantos outros. A poeira dos anos ainda não corrompeu
nossos cabelos, nossos olhos e corpos. Somos jovens e alimentamos grandes
esperanças.
Grito com a minha memória: fixa-te, suspenda o tempo ... e lá estamos
nós, paralisados, rígidos, esmaecidos, cor de sépia... Por favor, memória,
fixa-te, fixa-te.”
“As Turmas do Professor Joaquim Felizardo
Quando fui me matricular no IPV, o Prof. Felizardo descobriu que meu pai
fora preso político como ele no SESME, em 1964. Não permitiu que eu pagasse o
cursinho. És meu convidado disse ele para desespero de Clóvis Duarte e Enéas de
Souza, seus sócios. Havia várias salas de ‘convidados’ no IPV. Filhos de
políticos cassados, de exilados, jogadores de futebol e de basquete, soldados
de guarda civil, estivadores, dançarinas da boate Panamericana, motorneiros de
bonde, homens da noite, um picolezeiro e até um senhor que afiava tesouras.
Todos aguardávamos, com impaciência, a grande palestra sobre a Revolução
Francesa.”
“Enquanto Isso no Clube de Cinema
P. F. Gastal e Flávio Loureiro Chaves andam com rolos de filmes
escondidos nos casacões. Flávio parece ter roubado o capote de Gogol. Jeferson
de Barros, Enéas, Hélio Nascimento, Goida desvelam o cinema de Godard e
Antonioni. O público morria de tédio, mas os diretores eram da “ponta da
orelha” e as explicações dos críticos mais geniais ainda. Eu assistia a tudo e
fingia gostar, devorando caixas de “gauchinho”. O futuro maestro Celso Loureiro
Chaves soprava caroços de pipoca nas mocinhas intelectuais que, por sua vez
sempre diziam no fim da sessão, que filme denso! Que filme lúcido!”
“O Suicídio de Meu Amigo de Taquara
Percival teve um enorme desengano amoroso em Taquara e compreendeu que a
vida não tinha mais qualquer sentido. Resolveu, no entanto, suicidar-se na
capital para que seu gesto tivesse uma dimensão mais espetacular, mais
universal. Tentei demovê-lo: tudo foi inútil. Por não saber nadar, quis
afogar-se no Guaíba. Fomos para a praia da Vila Assunção, tomamos antes algumas
cervejas. Depois, ele me abraçou, olhou pesaroso pela última vez em direção ao
nordeste, onde fica Taquara e onde morava a pérfida mulher e entrou no rio. A
água era clara e doce. Ele foi entrando e sentindo o rio passar pela roupa e
tocar a sua pele. Sentiu mesmo em sua pernas um movimento estranho de peixes, o
milagre dos peixes do Guaíba. Não se matou. Como poderia fazê-lo naquela água
tépida e límpida dominada por inquietos peixes.”
“Os Ventos de Outono
São assombrosos e grandes os ventos de outubro em Porto Alegre. Por
causa deles, uma vez já pedi perdão. Hoje quero renovar o pedido. É para as
normalistas do Instituto de Educação dos anos de 1963 a 1967. Eu, interiorano
solitário, eu, carente amoroso, nos dias de ventania, ali, em frente da escola,
sangue exaltado, olhar lúbrico, observava as mocinhas que desciam as escadas e
enquanto as saias esvoaçavam, dançavam, subiam, baixavam e apareciam os joelhos
e pernas, um delírio, joelhos e pernas. Ah! O Instituto nos dias ventosos de
outubro!
Porém, havia outros companheiros; com óculos verdes de play-boy,
esgueirando-se lépido pelas palmeiras da Osvaldo Aranha, apesar de seu peso,
espreitando tudo com olhar meio tresloucado, lá estava a futuro historiador
Voltaire Schilling. E aquele outro rapaz interiorano, cheio de espinhas,
prenúncio de cavanhaque, ligeiramente míope e que também se delicia com o
bailado do vento, aquele rapaz, por Deus, é o Subsecretário Municipal de
Cultura, Carlos Winkler.”
“Os Artistas da Cidade
Eles construíram uma outra Porto Alegre. Com palavras, sons, cores. Os
outonos em Vamosy e Eduardo Guimarães. Os crepúsculos em Mário Quintana. Os
locais sagrados com Athos Damasceno. O Centro e o Mercado Público na pena de
Dyonélio Machado. Os bairros renascidos nas obras de Érico, Scliar, no Josué de
Camilo Mortágua. A fisionomia da Cidade percorre os textos de Caio Fernando, do
Noll, do Assis Brasil, do Arnaldo Campos. Uma Cidade de escritores. Uma Cidade
reinventada pelos escritores. E pelos músicos: Lupicínio, Túlio Piva, Nelson
Coelho, Nei Lisboa. Uma Cidade de grupos teatrais e de pintores. Invejo a
todos. Piso nas flores roxas dos jacarandás, na Feira do Livro, humilhado por
ser incapaz de expressar com palavras minha paixão por Porto Alegre.
Entro no Teatro São Pedro ou no Renascença com amargura por não saber
representar. E ressentido, assisto aos shows de flauta mágica de Plauto Cruz.
Nunca consegui tocar nenhum instrumento.
Invejo a todos, encho-me de despeito, de rancor mesquinho; mas por outro
lado, quando os livros desses autores se abrem, as peças iniciam, as músicas
fluem, aí então eu me comovo com os artistas da minha Cidade, os que falam da
alegria e da tristeza, motivos de criação, e estendo silenciosamente em sua
direção um longo afago, uma louca ternura.”
“Deu Pra Ti Anos 70
Nos anos 70 só resistimos ... Resistência miúda, sem glória, feita quase
em silêncio. Mas resistimos.”
“Na Livraria Quarup
Gustavo de Melo, gerente da Livraria Quarup ganha o salário mínimo e
pede aumento. Vamos tomar um chopp no Pedrini e eu lhe explico a situação: “É
uma época difícil para a livraria em Porto Alegre”. Ele concorda em baixar 20%
no seu próprio salário. Como só pode fazer uma refeição por dia, não consegue
dormir à noite. Para esquecer a fome, lê de maneira desatinada. Lê as noites
inteiras, um livro em média a cada 24 horas. O grande historiador Décio
Freitas, freqüentador da Quarup, explica que os uruguaios têm um nível de
escolaridade muito melhor que o nosso.
Sonhando com batata frita Gustavo de Melo foi o gerente de livraria mais
lido, mais culto, que Porto Alegre já conheceu.”
“Pela Última Vez
Pela última vez, nesta tarde, olho para trás, dominado, é verdade, por
certa nostalgia. E assim posso escutar as vozes e os murmúrios dos amigos
mortos ou daqueles que simplesmente se afastaram pelos desígnios do acaso.
Escuto possivelmente as vozes das mulheres que amei, e que triste vocação do
amor, também passaram. Preciso dizer que, nestes quase trinta anos de Porto
Alegre, há muitos gestos que não cometi e dos quais me arrependo. Em
compensação, se muitos dos meus atos causaram em alguém dor e sofrimento, eu
suplico ao ofendido que apague, borre, dando-se conta de que nós, interioranos,
somos freqüentemente toscos no trato e na vida. É possível que certas palavras
tenham sido ditas de forma áspera ... Era por pudor, era por pudor da ternura
meus amigos; outras palavras, quem sabe as mais vitais, ficaram presas na
garganta e nunca foram pronunciadas. Adianta desculpar-se agora?
Pela última vez contemplo esta Cidade, Cidade mãe, Cidade amada, Cidade
abrigo. E, amorosamente, olho para estas ruas e avenidas, estradas e becos,
parques e praças, monumentos, casas, edifícios, luzes. Muita coisa mudou desde
1962. Hordas de pobres, expulsos do campo, invadiram artérias e viadutos,
multiplicando-se como flores do esgoto, dando-nos a impressão em que vivemos na
Londres de Charles Dickens ou na Paris de Os Miseráveis, de Vitor Hugo.
Esquecidas, sujas e abandonadas, crianças sem pais e sem pátria vagam pelas
ruas onde antes namorávamos. Será possível um dia voltarmos a aquela Porto
Alegre, bucólica e fascinante da Confeitaria Rocco, do Matheus, do footing na
Rua da Praia, do papo descompromissado do Largo dos Medeiros? Ou estaremos
condenados a fugir para sempre dos mistérios e encantos dessas ruas?
No começo dos anos 1970, viajando com meu amigo J. L. A. Netto pelo
interior de Santa Catarina, vendendo livros e polígrafos em colégios e
cursinhos, diga-se de passagem, com o mais absoluto fracasso, paramos num
pequeno e decadente colégio. O diretor daquele mundo em ruínas, não apenas não
nos comprou nada, como nos vendeu aquilo que era o projeto máximo de sua
existência: um guarda-chuva cósmico. Horrorizado com o negror dos guarda-chuvas
convencionais, ele pintava estrelas, luas e planetas na parte interna do pano,
de forma que se abríssemos o guarda-chuva, vislumbraríamos o firmamento. Contra
a tempestade, as estrelas.
Acho que está na hora de abrirmos guarda-chuvas cósmicos. Não para
mistificar a realidade, mas para despertar a esperança. Precisamos nos unir
para termos a esperança de que as massas miseráveis serão integradas à Cidade,
em condições mínimas de saúde, educação, trabalho e moradia. Só então nossos filhos
poderão voltar às ruas, as mesmas que me receberam tão afetivamente. As ruas de
uma Cidade que a partir de indelevelmente hoje também é minha. Obrigado.”
(Não revisto pelo orador.)
O SR. PRESIDENTE: Vamos encerrando os trabalhos
desta Sessão Solene. Agradecemos a presença de todos. Voltem sempre e que o
Sergius esteja sempre ao nosso lado. Muito obrigado.
(Levanta-se a Sessão às 18h35min.)
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